Aceita um qat?
Esquecido pelo mundo durante séculos e temido por turistas, o Iêmen começa a se abrir e a surpreender os raros visitantes. Não é a toda hora que se descobre um país intocado, em que a mitologia islâmica e a história se mesclam em cada olhar
Texto e fotos por Arthur Simões
Esquecido pelo mundo durante séculos e temido por turistas, o Iêmen começa a se abrir e a surpreender os raros visitantes. Não é a toda hora que se descobre um país intocado, em que a mitologia islâmica e a história se mesclam em cada olhar
Texto e fotos por Arthur Simões
![]() Flagrante em transporte público em Sanaa, a capital do Iêmen. |
![]() Ruas labirínticas de 2.500 anos. |
Apesar de pouco conhecido hoje, o Iêmen é tão antigo quanto a Bíblia. Sua história se entrelaça com os mitos dos filhos de Noé, com a epopeia mesopotâmica de Gilgamesh e com a famosa Rainha de Sabá, de árabes e cristãos. Seu território, localizado no canto sul da Península Arábica, entre Arábia Saudita, Omã e uma faixa de mar que o separa da África, é um dos berços da humanidade, mas foi esquecido pelo mundo durante séculos. Com o tempo, o Iêmen também se esqueceu do resto do mundo. O isolamento secular manteve viva a magia exótica do país até os dias atuais.
Não é de hoje que o Iêmen impressiona os visitantes. Ao pisar nos confins do Oriente Médio e se deparar com a calorosa hospitalidade dos seus habitantes, os romanos chamaram a região de "Arábia Feliz". O profeta Maomé, ao passar pelo território, registrou ter encontrado ali as pessoas mais gentis que conhecera. Ainda hoje os visitantes elegem o Iêmen como um de seus destinos favoritos, não só por sua singular beleza natural, mas, especialmente, pela hospitalidade e simpatia da população, que vive de forma simples e alegre apesar da pobreza - sempre com o costume de mascar, todo dia, após o almoço, a popular folha do estimulante qat.
Percorrer o país é refazer os passos do lendário explorador árabe Ibn Battuta (1304-1377), sabendo que pouco mudou desde o século 14 até hoje. O fato de a região ter sido habitada durante séculos por um povo nômade obrigado a contar com a hospitalidade dos outros para se manter em movimento pelo deserto, a influência dos preceitos do Corão (que recomendam tratar e receber bem os viajantes, como se fossem sábios) e o relativo desconhecimento da região pela indústria turística tornam o Iêmen o destino ideal para quem valoriza autenticidade, cultura e uma hospitalidade há tempos perdida na maioria dos países.
![]() (clique na imagem pra ampliar) ![]() Vestígios da guerra civil de 1980, na praia |
Olíbano e mirra
Apesar de tão antigo quanto a história da humanidade, o país só entrou no mapa global no século 1 antes de Cristo, graças a sua produção de olíbano, uma resina vegetal também chamada de franquincenso - o incenso verdadeiro -, e da extração de mirra, outra resina usada em medicamentos e como incenso em tempos bíblicos. Na época, a doce fumaça de tais commodities valia ouro. De lá para cá, as aromáticas resinas perderam seu valor e o Iêmen empobreceu e passou a sofrer a influência de outras culturas. A lista dos que tentaram colonizar o país é grande e inclui egípcios ptolomaicos, abissínios, persas, portugueses, otomanos e ingleses. Nenhum teve muito sucesso, o que até hoje é motivo de orgulho para os iemenitas.
Apesar de tão antigo quanto a história da humanidade, o país só entrou no mapa global no século 1 antes de Cristo, graças a sua produção de olíbano, uma resina vegetal também chamada de franquincenso - o incenso verdadeiro -, e da extração de mirra, outra resina usada em medicamentos e como incenso em tempos bíblicos. Na época, a doce fumaça de tais commodities valia ouro. De lá para cá, as aromáticas resinas perderam seu valor e o Iêmen empobreceu e passou a sofrer a influência de outras culturas. A lista dos que tentaram colonizar o país é grande e inclui egípcios ptolomaicos, abissínios, persas, portugueses, otomanos e ingleses. Nenhum teve muito sucesso, o que até hoje é motivo de orgulho para os iemenitas.
Durante séculos o território se manteve na mão de líderes tribais e religiosos. Apenas no século 20, a geografia do país começou a ser redesenhada graças à descoberta de petróleo, a principal receita da economia iemenita atual, que continua a ser a mais pobre do Oriente Médio. Depois da colonização otomana e britânica, o Iêmen foi dividido em dois, e durante décadas o Iêmen do Norte, capitalista, duelou contra o Iêmen do Sul, socialista. A parte sul, primeiro e único Estado marxista do mundo árabe, foi derrotada na década de 80 e, em 1990, o país foi unificado como República do Iêmen, sob a presidência de Ali Abdullah Saleh.
A ausência de um governo democrático induziu às revoltas recentes, sintonizadas com o movimento da Primavera Árabe, para tirar Saleh de seu mandato sem fim. Em fevereiro, o presidente aceitou deixar o cargo, assumido por seu vice, Abd Rabbuh Mansur Al-Hadi, depois de uma eleição. Tudo indica que, apesar da eventual violência terrorista, o país vive o início de uma nova fase política, na qual estará mais aberto para o cenário internacional. Mesmo com a revolução, é bem provável que o Iêmen continue sob grande influência tribal e religiosa, a qual tem mais poder na vida dos iemenitas do que o próprio governo.
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1. Pescadores em Al-Mukalla
2. Jambia na cintura e saco de qat na mão 3. Sacos de olíbano, o incenso verdadeiro, no mercado |
Burcas e jambias
Quem chega ao Iêmen tem a impressão de entrar em um universo paralelo. Os homens são maioria pelas ruas, quase todos usando turbantes, túnicas, bigodes, saiotes e paletós, sempre com um largo cinto que sustenta a tradicional jambia, uma espécie de adaga, símbolo do mundo árabe. A imagem impressiona, especialmente pela faca que sugere que estão prestes a duelar a qualquer momento.
Quem chega ao Iêmen tem a impressão de entrar em um universo paralelo. Os homens são maioria pelas ruas, quase todos usando turbantes, túnicas, bigodes, saiotes e paletós, sempre com um largo cinto que sustenta a tradicional jambia, uma espécie de adaga, símbolo do mundo árabe. A imagem impressiona, especialmente pela faca que sugere que estão prestes a duelar a qualquer momento.
Conforme se conhece a cultura, tudo muda. Simpáticos, os iemenitas logo se mostram abertos a conversar e desarmam qualquer receio. É fácil perceber que ali se está muito mais seguro do que em muitos lugares do mundo. A própria jambia nem corte tem, sendo tão letal quando um garfo ou uma colher. Na verdade, só é usada em danças tradicionais, em que homens bailam entre si batendo uma faca na outra.
No segundo momento, descobre-se a inocência e a simpatia do povo. Provavelmente por conta da sharia, o rígido código de conduta do islamismo, a criminalidade é próxima de zero, o que explica a serenidade e despreocupação de todos, os carros abertos na rua e os inúmeros convites para tomar um café, provar tâmaras frescas ou apenas falar sobre a vida.
Quem chega ao iêmen tem a impressão de entrar em um universo paralelo.
Mesmo na capital e maior cidade do país, Sanaa, a sensação é de tranquilidade. Isso também vale para as mulheres, submetidas às leis religiosas. Ao contrário de outros países islâmicos, o Iêmen costuma ser seguro inclusive para mulheres estrangeiras que viajam sozinhas. Apesar de normalmente usarem longas burcas de cores escuras, e de serem bastante reservadas, as iemenitas podem ser mais liberais do que parecem. Um sinal é a presença de inúmeras lojas de roupas íntimas, bastante ousadas e visíveis nas ruas de Sanaa. A primeira sensação é de que estão no lugar errado, mas logo se percebe que há mais coisas debaixo de uma burca do que os olhos podem ver.
![]() 2. Crianças em Taizz. 3. Estacionamento em Shibam |
![]() 1. Mercado de tâmaras em Sanaa. |
Manhattan do Deserto
Sanaa, a 2.300 metros de altitude e com 1,7 milhão de habitantes, é a mais antiga cidade do mundo continuamente habitada. A lenda diz que foi fundada por Sem, filho de Noé. A ciência comprova que é mesmo antiga, pois o centro fortificado existe desde o ano 500 a.C. Apesar do rápido crescimento dos últimos anos, a cidadela continua igual há séculos, com milhares de casas de cinco a seis andares, construídas com tijolos e barro, decoradas com linhas brancas. Mesmo as mesquitas e os minaretes não são diferentes e se misturam com os tons ocres da cidade, declarada patrimônio da humanidade pela Unesco em 1986.
A labiríntica Sanaa é uma atração à parte. É fácil se perder por suas ruas e vielas e descobrir traços de séculos de história islâmica. Grandes mercados de especiarias, tâmaras e incenso, restaurantes a céu aberto, mesquitas que entoam cânticos juntas, cinco vezes ao dia, como se participassem de uma sinfonia, pequenas portas que conduzem a universos particulares onde tudo parece ser diferente do que é visto pelas ruas, mulheres com burcas misteriosas, os sorrisos e a curiosidade mútua fazem de uma mera caminhada uma viagem por um cenário digno dos contos das Mil e Uma Noites.
Fonte: www.terra.com.br/revistaplaneta
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